Embora, como não poderia deixar de ser, o combate à longa e excruciante tragédia da pandemia de covid-19 deva polarizar a atenção, a reflexão e, sobretudo, a ação de todos que se sintam responsáveis como seres humanos, alguns temas, mesmo que não tenham igual urgência, não podem ser relegados ou adiados. Seja pela relevância social, econômica e humana, seja pela dimensão dos riscos, imediatos ou futuros, que encerram.
Sem dúvida, a escassez hídrica está entre tais temas, ainda que em regiões como a nossa e, especialmente, em estado tão rico em mananciais, como Mato Grosso do Sul, a abundância talvez oblitere a reflexão responsável sobre ser a água um recurso natural tão fundamental quanto finito.
Ainda que não haja, em horizonte previsível, risco de redução drástica de água potável em nossa região, a escassez hídrica não atinge apenas as reservas para consumo humano.
Consequência direta dos ciclos irregulares de chuva decorrentes dos desequilíbrios climáticos, essa escassez repercute de forma direta na geração de energia, nos processos industriais e na irrigação de lavouras, dentre outros.
A propósito, Centro-Oeste e Sudeste, regiões consideradas “caixas d’água” do Brasil por abrigarem rios que acionam hidrelétricas responsáveis por mais da metade da energia gerada no País, tiveram chuvas abaixo da média em todos os anos da última década. O efeito direto do fenômeno natural é o aumento nas tarifas de energia, que entre 2011 e 2020 foram majoradas em 74,3%.
Para grandes cidades, como São Paulo e região metropolitana, e Curitiba (o Sul tem enfrentado secas severas), a crise hídrica já não é, neste momento, uma ameaça futura, mas uma realidade que se evidencia na escassez de água potável suficiente para atender a demanda, impondo-se o racionamento rotativo.
Ainda há pouco, o Distrito Federal passou por um racionamento que durou quase dezoito meses. Eis um desafio muito mais grave e urgente que o risco de falta de energia.
Enquanto a sucessão de anos nos quais os reservatórios registram, ao fim do período chuvoso, volume abaixo do considerado seguro para abastecer a população, acende o alerta para riscos de crises futuras mais agudas e prolongadas, o déficit de geração de energia, embora menos traumático, tem repercussão socioeconômica ampla e duradoura.
Ainda que, segundo especialistas, a curto prazo não haja risco de apagão elétrico como o de 2001, o ciclo irregular de chuvas – ou sua má distribuição – repercute, de forma drástica, como se viu, na formação de preços da energia para o consumidor.
Em 2014, para aliviar a enorme pressão tarifária nas contas de luz, acarretada pela crise hídrica, o governo federal recorreu a empréstimo bilionário para socorrer o setor elétrico. Como não existe almoço grátis, os consumidores pagaram essa conta nos cinco anos seguintes.
Criada em 2015 como uma forma de agregar às tarifas os custos mais altos da geração termoelétrica que mantém o sistema de pé quando as hidrelétricas não dispõem de água suficiente, a bandeira tarifária impôs aos consumidores um custo extra de R$ 35,42 bilhões até 2019. E isso somente na conta de luz, porque é praticamente impossível calcular a repercussão do repasse desses custos nos preços de bens e serviços.
Mesmo que não haja consenso entre os especialistas sobre causas, duração ou recorrência – fenômeno cíclico ou resultado da ação humana no meio ambiente? – das crises hídricas, há concordância entre os estudiosos quanto a serem elas cada vez mais frequentes e, muitas vezes, mais severas e prolongadas.
Uma constatação parece estar fora de qualquer dúvida: estamos tratando mal o nosso planeta, dissipando ou degradando os recursos naturais e, com isso, comprometendo a saúde da Terra e a própria sobrevivência da humanidade em um futuro talvez ainda distante.
As recorrentes crises hídricas são uma advertência de que precisamos mudar drasticamente a forma perdulária como usamos um recurso tão essencial para a vida, como a água.
*Iran Coelho das Neves é Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.