Guarida a morte

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O surto do novo CoronaVírus não é o primeiro flagelo que contamina, mata e espalha tanta dor, além de deixar sequelas imprevisíveis em pessoas e famílias vitimadas. Já no alvorecer da República, ao assumir o comando do terceiro governo eleito no final de 1902, o Presidente Rodrigues Alves deparou com a epidemia da Varíola, que ameaçava duramente a saúde pública, também fustigada por outras endemias como febre amarela e a peste bubônica.

Determinado, Rodrigues Alves definiu que a saúde da população seria prioridade em seu governo.  Consciente do desafio que isso representava, em época de acanhado desenvolvimento científico e insalubres hábitos de vida do Rio de Janeiro, buscou um respeitável cientista da área, Dr. Oswaldo Cruz, cuja formação incluía estudos de microbiologia, imunologia e soroterapia no Instituto Pasteur, da França. Ao mesmo tempo, designou a pessoa de Francisco Pereira Passos para a Prefeitura da velha Capital; era a união da ciência e da política para enfrentar preconceito, egoísmo e manipulação dos que queriam impedir a vacinação e o medidas de saneamento urbano que contrariavam interesses pessoais.

O negacionismo e a conspiração contra as ações sanitárias, de então, produziram grandes tumultos, alcunhados como “Revolta da Vacina”; mas o acerto daquela prioridade e a firmeza das ações implementadas compensaram.  Afinal, inaugurava-se ali a cultura da imunização, que se consolidara com o tempo, porquanto governos racionais entenderam que a prevenção de doenças é mais eficaz do que o tratamento.

Essa cultura desembocou na criação do Plano Nacional de Imunizações, em 1973, em plena ditadura. A despeito da força do governo militar, os detentores do poder mantiveram incólume o profissionalismo do Ministério da Saúde e o compromisso deste com a ciência. O Ministro designado pelo Presidente Emilio Médici era um conceituado médico, Dr. Mario Machado de Lemos, dotado de largo conhecimento de saúde pública, vinculado à Organização Mundial de Saúde e ex-chefe da Organização Pan-Americana de Saúde-OMS.

Assim, ao atravessar governos e envolver administrações estaduais e municipais, o Brasil implementou um dos mais audaciosos e respeitáveis programas de imunização do mundo. Com isso, conseguiu erradicar a febre amarela, varíola, sarampo e a poliomielite. E quanto constrangimento, dor e limitação foram evitados com as vacinas do “Zé Gotinha”?!  O influenza da gripe, que tanto maltrata idosos, e o rotavírus, que pode ser fatal em crianças, fazem parte de um extenso calendário de vacinações que têm protegido multidões de pessoas.

A regularidade desse calendário de vacinações é expressão de uma PRIORIDADE PELA VIDA. É prioridade do Estado brasileiro, amparada na ciência. Imunizar é reduzir a necessidade de remédios e desafogar o sistema de saúde.

A despeito de seus comprovados benefícios, subsiste um gueto obscurantista de pessoas que negam as virtudes da prevenção, pregando crendices e induzindo à erro legiões de pessoas em verdadeira reprise de 1902.

A diferença é que no começo do século XX, o Presidente Rodrigues Alves se ancorava na ciência e se incomodava com o sofrimento das pessoas. Já o Presidente de hoje é o símbolo do obscurantismo porquanto despreza o conhecimento científico. Na chegada da pandemia, ele afirmava tratar-se de mais uma “gripezinha”, quando especialistas do mundo todo anunciavam o potencial devastador do vírus.

Avesso ao aconselhamento científico, substituiu médicos que se apoiavam na ciência, optando por Militar que cumpre ordens. Assim, Pazuello virou Ministro da Saúde, que, por sua vez, substituiu técnicos de saúde por um batalhão de militares.   Após defenestrar especialistas, ficou fácil propagar o charlatanismo do Presidente, dado o servilhismo confesso do General ao Capitão-Comandante: “Um manda, o outro obedece.  É simples assim! ´´.

Com efeito, o profissionalismo que havia no Ministério deu lugar ao amadorismo, personalismo, ilusionismo, curanderismo e fisiologismo da atual administração. O resultado é o caos sanitário que está banalizando o sofrimento e a dor.

Uma cena inédita, que jamais imaginava assistir, foi a chegada de oxigênio em Manaus, quando populares recepcionaram cilindros como se fossem celebridades. Nada mais significativo do pânico de famílias abandonadas e fustigadas pela doença e a morte.

A catástrofe do Amazonas é o corolário da incúria do Presidente da República, que não consegue articular-se racionalmente com Estados e Municípios; outro fracasso são as tratativas com China e Índia, que bem demonstram a incompetência gerencial, que resulta na improvisação daquilo que deveria ser planejado e executado.

Toda orientação do “curandeiro-mor” tem se destinado à sabotagem das poucas medidas eficazes contra a propagação do vírus, tais como máscaras, distanciamento, isolamento. Sempre que pôde, o Presidente deu exemplo oposto à prescrição científica, inclusive a rainha delas: a vacina, que chegou a insinuar como possível causadora de efeitos colaterais genéticos:  a pessoa “virar jacaré”, “nascer barba em mulher, ou algum homem começar a falar fino”.

Além de semear dúvidas na orientação preventiva dos especialistas, o “curandeiro-mor” passou a receitar Cloroquina, remédio cientificamente inútil para combater a Covid-19, conferindo-lhe a condição de “tratamento precoce” da doença.

A leviandade com que o Presidente da República lida com a pandemia sugere que seu obstáculo não é apenas a inaptidão para administrar, mas a indiferença com a saúde e a sorte das pessoas e das famílias.

Diferentemente de outros governos que se empenharam na proteção da vida, Bolsonaro não se cansa de dar guarida à morte; sua prioridade para disseminar armas e munições e seus flertes com milícias apenas confirmam este juízo.

O que tem nos livrado de maiores desatinos são as instituições democráticas como Legislativo, Judiciário e Ministério Público, que vêm manejando seus freios para conter perigosas escolhas do Presidente.

A autonomia das agências reguladoras, como a ANVISA, foi garantida para resistir aos humores imprevisíveis e a possíveis aventuras de governos passageiros, praticadas em desfavor da saúde pública.

Na sua memorável reunião de domingo, 17, ela cumpriu, mais uma vez, essa finalidade ao declarar que não existe remédio para “tratamento precoce” da Covid-19! Ao confirmar o que todas instituições científicas do mundo já haviam reconhecido, expôs o charlatanismo do Presidente. Mesmo assim, ele segue receitando Cloroquina, medicamento inútil para a Covid-19 e perigoso para o coração. Ao aprovar o uso emergencial das vacinas do Butantan e da Oxford AstraZeneca, a Anvisa reconheceu as virtudes dos produtos, atestando a boa qualidade dos insumos procedentes da China, que sofreram injustificáveis preconceitos do governante brasileiro. Por ironia, nas duas vacinas os insumos chineses são indispensáveis.

Por sua vez, o bom observador deve estar enxergando lições importantes na administração da Pandemia.

Uma delas é de que a incompetência administrativa é tão maléfica quanto a corrupção.

Basta lembrar dos 6,8 milhões de unidades de testes do Covid-19 que venceram nos armazéns do Ministério da Saúde, desfalcando o erário em quase R$ 300 milhões e que tanta falta fizem para controlar a doença. É o caso, também, dos milhões de reais gastos com a Cloroquina, que poderia ter sido utilizados na compra de agulhas, oxigênio e outros insumos. Isso é IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, que deveria instigar o Ministério Público e outros agentes de fiscalização para responsabilização dos agentes públicos.

O governante que nega a ciência a fim de impor empirismo de suas convicções pessoais, não só causa prejuízos financeiros à coisa pública como sérios danos à vida humana. Isso se vê claramente na questão das vacinas. O governo foi lerdo para decidir; e quando se convencera de que seria inevitável a imunização, a fila dos compradores já era extensa. Resultado: indisponibilidade temporária no mercado e majoração de preços.

Não fosse a eficiência e determinação do Governo de São Paulo, seguiríamos privados da principal arma para enfrentar o vírus.  Por ironia do destino, coube ao governador João Dória livrar o Presidente Bolsonaro do vexame de manter a população brasileira excluída da proteção imunológica, em momento tão crítico da pandemia. Com sua agilidade, o legendário Butantan supre o Ministério da Saúde e socorre o Brasil, enquanto a Fiocruz ainda sofre os efeitos da lerdeza do intercâmbio do governo para internalizar o fármaco da Oxford AstraZeneca.

Embora alvissareira, a vacinação que começa, ainda mantém distante o fim da pandemia, até porque o vírus se alastrou demais e o charlatanismo segue influenciando ponderável parcela da população. Afinal, o governo que negligencia com a vida, acaba dando guarida à morte.

Valter Pereira, advogado. Ex-Vereador, Deputado Estadual, Federal, Constituinte, Ex-Senador da República

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